10.2.10

Stonewall




A questão do Dourado não é quem ele é. Isso é um problema dele e a gente sente que o cara tenta ser reflexivo e se arrepende da arrogância etc. A questão, pra mim, foi a rápida identificação de uma parcela do público com ele. Sem que ele tenha feito nada pra merecer, na primeira semana de programa todo mundo já estava torcendo pelo cara. Como o script da Globo nesse caso foi óbvio, a gente imagina o porquê da identificação. Ele entrou na casa por conta do comportamento homofóbico apresentado no BBB4. E a produção deve ter achado que seria interessante tê-lo como ingrediente e tal. O caso é que o público rapidamente o colocou como porta-voz. Como se tanta gayzice precisasse mesmo de um combatente etc. A reação foi histérica. Um tanto ridícula. No forinho, um amigo disse que as mulheres estavam úmidas e que devia ser isso. Eu pensei que vivemos na sociedade do espetáculo e que as subcelebridades tem um status enorme e mobilizam uma parcela significativa da população. Teoria da cauda longa aplicada, vemos ex-bbbs que ainda possuem fã-clube, comediantes de 5a categoria nos trending topics e atriz pornô convertida com vídeo hypado no youtube. Estou dizendo isso porque dei esse desconto. Tentei. Mas não dá. Tem coisas que vão além. A discussão sobre homofobia, então, ganhou o contorno mais preconceituoso do mundo. Quando dizem que deveria existir uma camiseta 100% branco. Mesma lógica. Começaram a dizer que o Dourado era vítima de heterofobia. Olha. Essa palavra é tão cruel que eu queria passar o programa todo sem tocar nela. É preciso que alguém seja um autêntico canalha para usá-la. É preciso que a pessoa nunca tenha lido uma droga de um livro de sociologia ou filosofia. É preciso que o significado do conceito de relativização seja completamente ignorado. Não existe heterofobia porque nós vivemos num mundo heterocentrado. Todos os valores e fundamentos tentam reforçar, pra todos nós, a sacralidade do casal heterossexual. Não existe vida fora da heterossexualidade. Um hetero não corre o risco de perder o emprego por conta de orientação. Um hetero não tem que esconder desejos, sentimentos e relacionamentos. Não existe um ambiente hostil para a heterossexualidade. Não existe a zombaria e os olhares. As piadas e insinuações. Quando uma colega sua é zoada na base do será que ela é? a resposta vem rápida "tá me estranhando", "deus me livre", "credo". Quantos "credo" um gay escuta por dia em referência à orientação sexual? "Que desperdício fulana ser lésbica". Quando eu vi que a Globo ia colocar a questão no BBB, sabia que ia dar merda. A emissora não sabe lidar com a questão e o programa é francamente emocional. Dourado perdeu voto hoje? De jeito nenhum. Ganhou voto hoje. Ele falou o que tá entalado na garganta de todo mundo: nós não temos moral. Imagina uma drag dar em cima de um macho? Falta de moral. Isso, my friend, é ambiente hostil. E nós não somos apenas gays. Nós estamos dentro de um movimento. Fazemos parte de uma luta. Uma das etapas fundamentais da nossa luta foi a construção da nossa subcultura. Não há lugar pra gente no mundo. Fomos construindo um lugar. Vida fora da heterossexualidade. E não construímos um gueto. Montamos um imaginário poderoso que é um pilar na desconstrução do preconceito. A rua Augusta está aí. Lady Gaga está aí. As performances do Serginho estão aí. Toda a arte homoerótica está aí. As drags queens estão aí pedindo passagem. Oscar Wilde é um símbolo. Shena e The L Word também. The Week e a A Lôca. Tem como ser gay e não dar pinta? Opa. Mas não tem como ser gay e não participar dessa subcultura. O S, do GLS, vem das pessoas heteros que curtem essa subcultura. No programa da TV, o Dourado se mostrou extremamente INCOMODADO com essa subcultura. Com todas as referências. Ele senta, durante as festas, quando toca "música de viado". Homofobia não é apenas atacar gay. É preciso ser um completo tapado pra não perceber as camadas do preconceito e quando ele é sutil. Como o Dourado não bateu no Dicésar, ele não é homofóbico. Faça-me o favor. A negação da nossa subcultura é homofobia. Você não tem espaço no meu mundo e eu odeio o mundo que você construiu. Não tem por onde. Tudo relativo ao mundo GLS incomodou o cara. Mas ele é reflexivo. Não considero um vilão. Acho que vem bem no programa. Ele escuta, pondera etc. O problema, repito, não é ele. É quem torce por ele. Porque a intenção é clara. Baixar a viadagem do programa. E aí não podemos ficar calados. Queria ficar o BBB todo sem tocar nesse assunto. Nunca vou considerar que a cultura de massas dá conta disso. Eu já sabia que do BBB não sairia um mundo mais tolerante. Eu só não esperava que a intolerância fosse vir em forma de avalanche e, pior, covardemente mascarada. Ele pode ganhar 1,5 milhão? Pode. Pode ganhar 15 milhões. Milhares de homofóbicos estão por aí, enchendo o rabo de dinheiro. Não faz diferença para a nossa luta. Não somos maioria nem queremos ser. Vamos continuar fazendo o que sempre fizemos. Fortalecendo a nossa auto-estima através da nossa subcultura. Buscando visibilidade através das nossas paradas. Criando redes de proteção para aqueles que ficam desamparados por conta da discriminação. O que deve ficar claro, eu acho, é que nós já esperávamos. A cada conquista sentimos a reação conservadora. Entrar no BBB tem uma conotação de conquista. Então veio a reação. Mas que venha. Não é o primeiro ataque que sofremos. Não será o último. E nós não temos mais medo. Podem gritar bastante. Podem soltar foguetes. Nós somos gays. Nós estamos aqui. Acostumem-se com isso.

Tô pensando muito no Dicésar, sabe? Em como ele está se sentindo. Depois, na varanda, ele não falou diretamente no assunto. Falou que já passou por tanta coisa em boates e tal. Nossa. Como ele nao merecia isso em rede nacional. Essa reação de asco e nojo. Ser amado por ele se tornar um desvio de caráter. E ele que nem ama. Passar por isso por conta de uma piada. Ser agredido daquela forma. Chorei um monte por conta disso.